SPES DEVORATRIX - Parte 1


      A coronha acertou em cheio no queixo, quase soltando seu maxilar. Seus supostos "dentes" feitos de ferro se soltaram facilmente com o golpe, se fragmentando no chão pedaços de afiados de metal.
- É assim que acaba então? Eu jogado aqui esperando sua sentença? – disse ele recolhendo os pedaços esmigalhados de seus dentes caídos próximos.


      O mundo já não era mais o mesmo. Desde o inicio dos primeiros grandes conflitos mundias no inicio do séc XXI já tinham se passado mais de 10 anos. Ninguém esperava realmente que as ogivas nucleares seriam lançadas, parecia só um jogo de força, um embate moral. Quando a primeira ogiva abalou o mundo, todas as outras seguiram o exemplo, transformando um acorde cataclísmico na ultima grande sinfonia da civilização humana. Eles eram jovens quando isso aconteceu, um casal com uma vida normal, em mais uma metrópole desse mundo promissor. Eles jantavam quando aconteceu a primeira explosão, desde então nada nunca mais foi como antes, e nunca mais seria. Os dias que vieram depois disso foram de completa catatonia. O mundo tinha parado, estava preso naquele fragmento inóspito do tempo, onde não sabemos se seguimos, ou voltamos.


      Ela o observa em silencio e estática. Havia idealizado aquele ultimo dialogo em sua mente centenas de vezes, mas nunca realmente tinha refletido no efeito de vê-lo tão de perto e o que se tornou. Ele fedia muito, era o cheiro que a fazia lembrar que aquilo caído não podia ser quem ela amou um dia. Aquela coisa era a sombra, dentro da sombra que foi sua vida um dia. E isso acaba hoje.


      Laura viu o mundo perder todo o brilho e se tornar cinza, um espectro fixo e sem vida de um mundo moribundo. Ela viu tudo que amava desaparecer em instantes, menos uma coisa. Vitor não desapareceu em instantes. Ele foi sumindo com o tempo, lentamente minguando e transformando em algo novo. Talvez ele nunca tenha se transformado de verdade, talvez o que Laura conhecia antes do fim de tudo fosse a parte falsa, e o que ela vê agora caído na poeira, sujo de sangue seco recolhendo os dentes fosse sua verdadeira identidade. Seu apetite não era nada questionável, era um homem que apreciava o sabor das coisas com deleite, as vezes até cantarolando e gemendo de boca fechada com cada garfada mais saborosa que a anterior. Ambos apreciavam boa comida, mas Vitor tinha no fundo do olhar uma paixão por todo tipo de boa carne. Investiu muito tempo aprendendo o preparo ideal de certos tipos de corte, sempre disposto a aperfeiçoar suas habilidades com o preparado de todos os tipos de carne que amava tanto servir e devorar.


      - Você poderia ter me partido ao meio com aquela escopeta mas não o fez – disse sentando-se no chão sujo e tirando a poeira das roupas, trampos que serviam mais para proteger do sol do que para qualquer outra função. Ela em 10 anos não tinha exitado um só dia em caça-lo, e aquele talvez fosse seu ultimo encontro – Então me diga, por que? Porque não acabar comigo?


      Não restara mais nada do mundo que conheciam. Estabelecimentos fechando permanentemente, mercados e mercearias sendo saqueadas por recursos, apagões diários e ocorrente com frequências cada vez maiores. Em poucas semanas o mundo já não era mais o mesmo, e Vitor parecia cada vez mais distante. Ele acreditava que ela não pudesse ouvir, acreditava que ela nunca perceberia as madrugadas que ele saia do apartamento e só voltava horas depois. Ela ouvia todas as vezes que ele saia e voltava, sem saber o que fazia nesse período noturno que sumia. A ultima noticia televisionada dizia que o conflito causará danos indescritíveis, e que as nações estavam se isolando com o passar das semanas e que todos deveriam tentar sobreviver com o que tivessem. O ultimo programa do mundo terminava com seu apresentador dizendo; "Tenham fé, não percam as esperanças e se possível, fiquem unidos. O fim virá para cada um de nós, mas se nos mant...". A transmissão é interrompida pela ultima vez, para nunca mais voltar.


      - Precisava ter certeza que era você – disse ela colocando o cartucho de 12mm dentro da escopeta de cano serrado. - Não consegui acreditar, não depois de tantas evidencias que você se transformou nisso - Existia pouco do homem que ela amara um dia ali.
Laura apoia a arma no quadril e segura com as duas mão para ter a firmeza para o disparo.
- Quantas foram? Só me responda isso, quantas foram nesses anos todos? - Ela não tremia mais como era no começo quando aprendia a atirar. - ME DIGA, QUANTAS FORAM?


Comentários

Postagens mais visitadas