Afinidade nos Olhos

O vento é gelado e o cheiro de fumaça agora é fraco. Já se passaram alguns dias desde o evento que levou todo o distrito ao caos com a ofensiva dos mortos-vivos. A invasão foi inesperada e cruel. Uma boa parcela da população sofreu perdas de familiares e amigos com a doença, mas depois que a doença tomou forma e os mortos começaram voltar a andar, a situação só piorou. No momento a situação estava sob controle e a maioria dos sobreviventes se encontravam na grande catedral. A elfa arqueira estava sentada na beirada de uma das calhas da catedral olhando de cima tudo e todos. A sensação de estar tão alto era boa. Um reconforto nesses últimos dias tão violentos.


Sua orelha mexe. Ela escuta alguém se aproximando por trás e pelas telhas de madeira perfeitamente encaixadas. O cheiro doce e quase nulo não engana a jovem elfa. Sua colega de olhos brilhantes veio fazer companhia pelo jeito. Às vezes parecia uma assombração, um vulto de algo profano que vagava pelas sombras seguindo e vagueando, mas a maioria das vezes era uma vista boa. Dawn já tinha se acostumado com a aparência de Vintage, era reconfortante ver a amiga que às vezes demonstrava muito mais calor e afeto sendo uma morta-viva, do que alguns vivos completos.


- Quando você não enxergava eu não me preocupava com o seu olhar me seguindo comigo distraída. – Dawn diz para Vintage depois de notar sua chegada tão perto durante a noite.


- Bom, em minha defesa, quando eu não enxergava eu não conseguiria subir aqui, então… - Vintage pareceu olhar para elfa, se aproximando um pouco - Empate?


Vintage finalmente tomou coragem e se aproximou da outra, parando ao seu lado, poucos passos atrás. A desmorta tinha um enorme afeto por Dawn. Era uma mulher de hábitos estranhos e passava mais tempo cochichando com sua ave do que com outras pessoas, mas existia lealdade em seu olhar. A elfa na beirada e a vista de cima não a deixaram confortável.


- Ham! Eu nunca imaginei que podia ter “medo” de algo já estando morta. Como vocês fazem coisas tão altas assim sem ter medo de cair e… - disse ao olhar para o patio da catedral. Dezenas de barracas estavam erguidas para abrigar as pessoas desabrigadas. Ela conseguia ver o cerco feito por mortos-vivos, criaturas tão semelhantes a ela quanto um peixe e uma ostra são iguais. Ela era uma desmorta. Voltou da vida após a morte com sua sapiência e sentimentos, não era aquele amontoado de ossos, carne podre e ódio que via cercando as muralhas.


Ela aquietou os pensamentos e - finalmente - encarou a vista completa em sua frente, olhando a paisagem que as cercavam. Percebeu que a maior parte dos focos de incêndio tinham diminuído. Talvez um pouco de esperança no ar.


- Uau. Isso é de tirar o fôlego. Me lembra a morte… Mas… Falando em morte… O que houve? Porque subiu aqui e se isolou dos outros


A elfa desvia o olhar e começa a coçar o queixo de Vyscenia, sua falcão de caça que nunca saia do seu lado. Tantos anos juntas tornou a ave e a moça quase um ser só. A ave estava agitada. E Dawn também.


- Eu... Só queria ficar sozinha. Pelo menos um pouco. Andamos sempre de cima para baixo juntos e queria um pouco de silêncio. Passei uma boa parte dos últimos anos viajando e caminhando sozinha. É estranho e novo estar tanto tempo em um grupo.


A ave saiu de seu ombro voando e sumiu à noite. Era voraz por olhos frescos e não tinha nenhuma cerimônia para comer dos que não precisavam mais de visão.


- ...na verdade. Eu te digo o motivo de estar aqui, mas me promete manter segredo? - a elfa parecia bem indefesa naquele momento, algo que não passava quando estava com seu arco em mãos. Com o arco e flecha em mãos, passava a coragem de uma matilha inteira de lobos, mas ali não passava de um filhote.


O voo da ave era algo tão bonito quanto a paisagem da noite cobrindo aos poucos todo o horizonte. Mesmo com a pouca fumaça, Callorun e seus distritos tinham seu encanto e temor constante do desconhecido logo abaixo no Abismo. Vintage demorou um pouco a terminar a frase ao mesmo tempo que acompanhava com sua vista - recém ganhada - a bela criatura no céu.


- Compreendo... - ela se aproximou - eu me senti muito assim já, mas antes, não tendo a vista, era meio estranha a ideia de sair por aí e não encontrar vocês. - Vintage ainda estava se acostumando com a visão recém recuperada.


De alguma forma sua visão voltará depois de um encontro estranho com entidades e Deuses patronos. Pelo jeito até as clérigas tem seus segredos. Uma breve pausa ouvindo a elfa afiar uma de suas flechas fez a desmorta perceber, a postura sempre tão atenta e afiada estava realmente mudada na elfa.


- Hum, claro. Eu não faço o tipo fofoqueira, se não notou. - riu baixo - Não sendo algo que me ponha em aflito com minha Deusa, o resto é.. Qual o termo que vocês usam? Mamão com sal? Não... Acho que não é isso... - Ela notou que estava devaneando muito e então.


Dawn então fica de costas para o horizonte e se senta olhando para o telhado da catedral e o rosto de Vintage. Já não achava mais tão estranho o espaço onde deveriam ter olhos ter estrelas no lugar. Passava um certo conforto. Era como olhar para o céu e ver um rosto com lanternas iluminando a caminhada noturna.


- É sobre um certo guarda... Um que encontramos semanas atrás… - Era evidente o desconforto da elfa se tratando desse assunto, e chegava a ser engraçada a tentativa de colocar em palavras o que parecia relutância de algum sentimento. - A Vyscenia não me dá bons conselhos sobre como lidar com pessoas, e não falei dele com ninguém... - ela estica os dedos para acariciar a ave, mas logo de imediato percebe que ela não está em seu ombro. Está caçando olhos para comer.


- Foi um dos guardas que prometi um presente se voltasse vivo de um dos andares profundos do Abismo! É isso! Ele tem me tirado o sono! Ele voltou! - diz rapidamente e logo depois se cala.


O rosto da elfa, mesmo com a luz do luar, estava rubro. A desmorta observava a outra que mudou ainda mais sua postura conforme suas palavras se faziam presente.


- Animais tem um jeito meio direto pra fazer as coisas mesmo… - Sussurrou, não querendo cortar ou mudar o assunto. Por isso segundo percebeu nos olhos de Dawn que ela achava que tinha chamado ela de animal, mas logo depois a elfa percebe a confusão e suas orelhas baixam.


Vintage concordou, mostrando prestar atenção a outra.


- Ora… Que tipo de presente? É algo que vai te colocar em risco ou… - Não demorou muito para que ela notasse o tênue rubor no rosto alheio e, mesmo não tendo cenho ou pálpebras, sentiu que arqueava algo imaginário ali. Ela estava morta, mas sabia do que se tratava. - OW! Dawn! Entendi… Mas, de onde você acha que veio isso? Esse… Sentimento? Você já pensou o que ele significa pra você? 


Vintage descruzou os braços, sentando de frente da elfa que ainda parecia séria, apesar de constrangida. Quem visse as duas, uma sentada na beirada de costas para o precipício de mundo e a outra de frente de costas para a entrada do telhado diriam que poderiam ser irmãs. Mesmo muito diferentes em hábitos, jeitos e formas de falar, tinham feições semelhantes.


As orelhas da elfa abaixam e com a abertura dada, ela olha para os lados em desconfiança. Tendo a certeza que somente ambas estão no telhado, Dawn solta o ar e fala.


- Eu achei ele muito fofo quando vimos ele com seu agrupamento prestes a partir para o desconhecido 5º nível do Abismo. Seu olhar inocente e apreensivo com a descida para o inexplorado. - as mãos de Dawn agora estavam amarrando e desamarrando uma cordinha enquanto falava - de início ele me parecia uma presa fácil, quase um coelho aguardando a flecha certeira. Agora... Nossa, agora...


O Abismo era um grande espaço vertical no centro de Callorun catalogado e explorado por andares, e quanto mais profundo o andar, mais perigoso. O lanço entre os dedos da elfa começa a ser puxado por uma das mãos, e os dedos enrolados na cordinha começam a ficar roxo e marcados com o aperto das mãos fortes da jovem mulher.


- Agora tudo mudou. Você já sentiu isso?


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Vintage concordava com a cabeça e diz.


- Sim. Eu sei exatamente como se sente. Eu… - ela parava para assoprar uma mecha que caia sobre os olhos antes de continuar - eu me sinto assim sobre Ela. Sinistrix. Eu não sei explicar. Mas entendo perfeitamente o sentimento. 


Era difícil para uma clériga explicar para uma elfa qual o sentimento de amar tanto algo que não pode ser visto ou tocado, mas que te preenche de esperança, calor e forças. Ela olhava as mãos da elfa e logo se aproximou desfazendo os nós que apertavam seus dedos com delicadeza, pegando a corda por uns instantes, mas sem tirá-la por inteiro da mão da outra.


- Bom, pela minha experiência nesse mundo eu posso te dizer que as coisas são passageiras. Medo, fúria, dor, e até o amor… Então não espere que ele vá embora, o sentimento ou o rapaz, sem você escolher o caminho que te faça sentir melhor. Eu morri muito rápido, e nesse mundo que estamos, em meio a esse apocalipse - ela parava pra olhar a paisagem em volta, focando agora nas luzes de chamas em volta, na fumaça e em um ou outro zumbi que tentava passar por entre as grades sem êxito - não podemos e não devemos deixar pra amanhã, precisamos viver, ou existir - disse rindo olhando para seus dedos meio cadavéricos e meio ilusoriamente carnudos nas partes tocadas pela luz da lua - agora da melhor forma.


Vintage devolvia a corda para outra e apoiou o queixo nas mãos.


- Pensa pelo lado positivo Dawn! Ele existe e está aqui! Melhor do que ser uma criatura divina inexistente num plano material cuja o qual você é apenas um seguidor dentre tantos… - O sorriso amarelo da outra aparecia quase que por impulso, numa tentativa branda de fazer piada de sua própria tragédia.


- Mas me diz… - Dizia mudando totalmente o timbre da voz - quem é ele?


Dawn vira sua cabeça e olha para colega com uma certa curiosidade.


- Eu nunca fui muito apegada a Deuses. Meu pai não era um homem adepto dessas coisas, só me ensinou a acreditar em nós mesmos e na nossa tradição da caça. As vezes sinto falta dele. - Ela nota a gentileza da Vintage com sua mão e sorri.


- O seu pai, onde ele está? - pergunta a desmorta para a amiga enquanto pensava um pouco sobre as relações familiares que tivera em vida.


- Meu pai morreu já faz alguns anos. E se perguntar de minha mãe, saiba que não sei onde ela está. Nunca nos demos bem. Com meu pai era bem diferente, ele foi o ápice de qualquer elfo pescador que já existiu! - diz a elfa cheia de um certo orgulho. - mas voltando ao caso do guarda, você pelo menos sabe quem é Sinistrix. Eu não sei quem ele é. Trocamos olhares quando ele voltou do Abismo, e ele está diferente. Fisicamente diferente e com outra aura...


- Desde que me entendo por gente em vida eu estive em um templo. No de Heliodorus pra ser exata. Meus pais me largaram no convento de jovens enquanto eles se dedicavam como missionários para ele. Eu sempre odiei a religião. Mas era o que eu tinha. Dentro do templo de Heliodorus eu era intrometida, curiosa, estudiosa, porque queria de toda forma derrubar a intacta hierarquia que ele impunha aos seus fiéis. Morri tentando saber mais sobre isso. Mas, depois de morrer eu fui abraçada por Ela e… Pela primeira vez em muito tempo, eu me senti VIVA.


Vintage ouvia as palavras que saiam de si e parava quase que imediatamente. Fora a primeira vez que contará pra outrem sobre ela ou sobre sentimentalidades. Falar em voz alta sobre sua paixão platônica em Sinistrix era algo estranho. Quase como uma confissão. Se perdeu de novo quando a outra começou a falar novamente.


- Bom, Dawn, só tem uma maneira de você descobrir mais sobre ele. Converse com ele. Se aproxime! Às vezes você conhece ele melhor e desencana, ou conhece melhor e se apaixona mais, de qualquer forma, você só vai se sentir melhor quando se aproximar dele. 


A outra pensou uns instantes antes de continuar.


- ”Aurora” Dawn, e se a gente fizesse um almoço pra geral aqui e chamássemos ele pra nossa mesa, e mais algumas pessoas? Podíamos sair para caçar agora e mataríamos vários coelhos com uma cajadada: procuraremos recursos, criaríamos uma distração pros que sofrem aqui no templo, você ia poder caçar e ainda ia poder se aproximar do tal.


Depois de dizer isso, Dawn percebe que sua amigue tinha lhe chamado pelo nome em comum. Ela não tinha apego por aquela alcunha que tinha adotado para se adequar melhor às civilizações estranhas. Elfos costumavam ter o nome de nascimento, o nome que sua família escolhe e o nome que escolher para viver fora de sua sociedade. Dawn era seu nome na sociedade.


- A vida com clerigos em grandes torres de pedra deve ser engraçado. - disse Dawn para logo perceber o plano da amiga. - …quanto ao seu plano, EU ODIEI! - ela se levanta na beirada da catedral tão alta - Prefiro me jogar de cabeça daqui e torcer para o meu pescoço se partir no impacto!


Novamente, seu rosto estava vermelho feito um tomate maduro quase explodindo. Conseguia sentir o calor no rosto por se visualizar caçando com o jovem guarda pelas matas locais, se jogando na grama depois de pegar um ao outro como presa.


- Eu sou uma caçadora de espreita e distante. Não vou me aproximar dele, e se ele... Me encurralar?


 - Talvez você esteja certa... - não tinha como esconder que estava com receio de abordar o jovem guarda. - E vai fazer o que sobre isso? Sobre o guarda? Decidiu?


- Vou esperar o momento certo. É isso que farei sobre ele.


Ela olha mais uma vez para o horizonte em chamas da cidade e como cada canto da região pacata que tinha escolhido para viver era caos.


- Eu que agradeço. De verdade.


A desmorta ria se afastando um pouco, pisando entre as telhas com cuidado, até chegar numa janela.


- Parece que os meninos chegaram. Você quer ficar mais um pouco aqui em cima? Quer esperar Vyscenia?


- Vamos descer. Vyscenia tem o hábito de sumir de tempos e tempos, mas ela sabe o caminho de casa. O importante é saber o caminho de volta sempre.


Ela desce da beirada, e olha para Vintage mais uma vez. Sua desconfiança costumeira era irreversível, mas por algum motivo não tinha como desconfiar dela. Todo caçador tem um ponto cego.Ela dá um tapa no ombro da colega. Um gesto amistoso.


- Mudando um pouco de assunto, criei uma nova teoria sobre o corpo do Dex. Talvez se colocarmos ele na pá do Ledros e pedir educação podemos…


E com isso as duas descem a escadaria do telhado, sem imaginar o quanto o futuro mudaria as duas completamente.

Um texto canônico dos eventos na Invasão de Mortos-Vivos em Callorun.

Uma co-autoria entre Loker e Cake Lee

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