Entre Pais

 O cigarro aceso entre os dedos já não adiantava muito para acalmar as mãos trêmulas do contrabandista. Tantos anos abusando disso já não servia mais do que uma simples distração para os dedos em momentos de ociosidade. Nunca parou em lugar algum porque nunca conseguiu criar raízes. Se mover era parte da sua natureza. "O dia pode ter sido quente, mas as noites seguem frias", foi o que Ivan pensou ao entrar na cabine. Tantas memórias reunidas em um pequeno espaço de madeira. O pouco que tinha como lar nesses anos todos. Suas conquistas, sonhos e memórias. Todos reunidos ali.


Trancou a porta. Foi em direção a janela do cômodo e viu algo estranho. Estava escancarada. O vento talvez. Foi de uma ponta do cômodo até a outra sem preocupações e fechou a janela. A batida de vento derrubou a única vela acesa. Não havia vento. As sombras cercaram a cabine e ele vislumbrou um vulto. Alguém estava ali com ele. Em um ambiente tão fechado, sua besta seria uma arma inútil. Teve tempo de procurar sua Lâmina Tritã. "Aí droga", foi o que pensou em poucos instantes. Deixou a lâmina com seus companheiros. Teria que improvisar com a Espada de Ladino que não tinha testado ainda.


Tarde demais. Sempre tarde demais. Sacou a arma e de imediato seu corpo inteiro paralisou em um simples estalo de dedos. A figura esguia remexia em suas coisas. Não conseguia ver quem poderia ser. O grito que tinha estava preso na garganta. A figura se aproximou do contrabandista e encostou a espada em seu pescoço. Era fria, e tinha uma vibração muito familiar. Algo elétrico.


- Só vim pegar um pouco de comida, pirata idiota. - A figura disse, sem que Ivan pudesse ver o rosto. Pela voz, ele sabia que estava cansado. Talvez até exausto. A figura revirava a cabine buscando alimento. O contrabandista não enxergava no escuro, estava em sua cabine fechada e não identificava seu adversário. Era realmente um tiro no escuro. E era tarde demais. Desde o começo.


A magia de paralisia era efetiva, mas era possível desfazer com uma prece. Blatae, Voda e Massina fariam sua parte. No instante que a magia se desfez, a figura viu que era tarde demais. Ivan era mortal, e mesmo com a pouca visibilidade, seus dois tiros encontraram o alvo. Sempre tão devagar Ivan. Sempre.


A figura caiu. O contrabandista conseguiu acender uma luz, já tinha sentido aquele arrepio terrível, que gelava o coração e amolecia os braços. Sentiu aquilo quando recebeu a notícia da morte  de sua amada. Sentiu quando percebeu que seus pais nunca voltariam do naufrágio quando era garoto. A morte era parte dos seus dogmas, e a morte sempre se apresentava para Ivan. Viu o jovem tritão, maltrapilho e cansado jogado no chão. Os dois virotes no peito do garoto. Um tiro certeiro e mortal. O contrabandista viu a Lâmina Tritã. A contraparte gêmea de sua espada. Identifica.


- Você sempre agindo antes de pensar. Um homem da sua idade não pode abusar da sorte assim. - A voz nas sombras disse. - Você não conseguiu manter uma única pessoa amada por perto viva, porque continua tentando, Ivan?


O homem caiu de joelhos, diante do corpo inerte e caído de seu filho. Ivan sentiu o peso de todos os anos que escolheu não participar da vida do garoto. Sentiu a responsabilidade de ter colocado o garoto em uma rota sozinho, sem seu pai. Era tarde demais. O contrabandista estava com os olhos turvos com as lágrimas. Eram lágrimas escuras, feito água com cinzas. A figura que falou com ele estava encostada no canto da cabine. Podia ver Uma sombra sólida, com os olhos brilhantes e rosa. uma cópia identidade de pirata veterano.


- Nunca conseguiu aprender a amar sem ferir os amados, não é? A verdade é que a vida no mar foi sua melhor fuga dessas responsabilidades. Você foge de todos que ama porque sabe que assim como um carcaju, você existe para ficar sozinho.


A figura era o próprio Ivan, feita de escuridão. O pirata via aqueles olhos rosa e sabia muito bem que era aquele que refletia sua imagem e semelhança. A sombra se aproximou do jovem caído, e se ajoelhou junto de Ivan. O toque era frio, mas reconfortante, como o sono que vem logo depois de uma ótima refeição.


- Você está perdido faz tanto tempo, onde espera chegar nessa jornada tão longa e cansativa, capitão sem navio? - disse a sombra com os olhos brilhando ainda mais. - Não está na hora de descansar capitão?


O contrabandista moveu mundos inteiros para interferir e salvar seu filho dos riscos da invasão e guerra que tinha se enfiado, mas Ivan tinha sido o verdadeiro perigo que se esgueirou e agiu como a tesoura no fio da vida de Nidalion. Não podia ser tão tarde assim. Ainda existia a chance de fazer a diferença. Ser o pai que nunca foi. A Mão que Água, a bênção de Voda era o caminho para corrigir seu erro.


- Se quiser que eu traga seu filho de volta, eu farei isso por você. - disse a sombra com olhos brilhantes, se levantando e ficando de frente com o corpo inerte do jovem tritão. - Eu farei ele vivo e forte, mas você ira me dever um favor. O que acha, capitão?


Ivan sabia dos ardis daquela criatura. Ele por um instante sentiu o toque de seu companheiro de viagem tiefling. Conseguia ouvir suas palavras duras mas sabias. Aquela ilusão não seria nada. Só mais uma mentira. Já chega de fugir dos problemas. Já era tarde demais para se esconder.


- Acho que já estou velho demais para os seus truques baratos, déspota dos sonhos, patife dos pesadelos, ARAUTO DAS MENTIRAS! - E em seu grito de fúria, o contrabandista saltou sobre sua cópia feita de  sombras, e derrubou no chão. Seu braço de água brilhava com a luz das estrelas, e a mão foi colocada sobre o rosto da figura. - Acha que tenho medo de você, usurpador dos Deus??? Eu já confrontei a morte e o fim de todos que amei. Meus pais. Amigos. Amores. Nidaria. Meu filho. Acha que você ME DÁ MEDO???


A luz de seu braço ficou ainda mais intensa. O cômodo se preencheu com o brilho da Bênção de Voda. A sombra era alvejada com luz, e conforme era alvejada, perdia sua forma e tamanho. A sombra gritava e se debatia com a luz queimando sua existência.


- SEU PIRATA IDIOTA! VOCÊ É SÓ UM HOMEM, NÃO É NADA! - A criatura, já deformada com o efeito da luz intensa criada pelo braço feito de água avança e salta sobre Ivan. O homem com um gesto transforma sua mão em uma lança feita de gelo, que atinge a cabeça da sombra. Ela se desfaz no chão, como se nunca tivesse existido.


- Eu não sou um pirata, eu sou um contrabandista. - As luzes se apagam novamente. Um frio intenso preenche o ambiente, e Ivan sente um calor forte vindo de sua barriga. Um calor e uma sensação de eletricidade. Uma vibração intensa vinda do estômago. O calor desce pelo abdômen. O relance de luz do luar passa pela janela com o balançar do navio. Ivan tentou disparar em seu alvo, mas errou. A resposta de seu adversário foi um golpe certeiro em sua barriga. Os dois homens puderam ver a luz da lua  refletindo no rosto um do outro. Pai e filho. O cabo da espada na mão do jovem e a ponta da espada perfurando o velho. Décadas separando os dois, agora unidos por um golpe mal dado. Sempre tarde demais.


A troca de olhares foi momentânea. E mesmo cercados de trevas, os dois sabiam muito bem quem eram. O filho sempre paga pelos pecados dos pais, com lágrimas ou sangue. E Ivan sangrava muito. A consciência do contrabandista se perdeu de novo. Seus olhos fecharam e um sorriso se abriu. O tritão abraça seu pai com força. O barulho do mar remexendo o navio era repetitivo e monótono.


Ivan sonhou. Reviu seus pais, quando ainda era jovem e trabalhava como pescador. Revisitou seus amigos do Miss Fortune, bebeu e riu a noite toda. Nesses sonhos, trocou carícias e beijos com Nidaria, falaram sobre o futuro e sobre o passado. Algo estava estranho, não encontrava seus filhos em lugar algum. Não importa onde seus sonhos fossem, não encontrava os meninos. Podia ser tarde, mas ainda tinha tempo para compensar as coisas. Ainda era tarde.


- Você finalmente acordou. - foi o que Ivan ouviu. A voz era rouca e o tom era calmo. - Se eu soubesse que era você, o golpe teria sido diferente…


- Eu sinto muito…  - a única coisa que saiu da boca do contrabandista. Ele estava deitado em sua cama. Tinha uma atadura enrolada onde o ferimento da espada tinha sido feito. Não foi ele que fez aquele curativo. Os olhos do tritão mudaram, assim que ele começou a falar. Era como uma tempestade que se inicia no meio do oceano sem aviso previo.


- Se eu soubesse que era você, eu teria feito esse golpe com muito mais intensidade! - disse Nidalion, jogando a cadeira que estava sentado de lado. Seu olhos emanava a fúria dos mares, mas suas mãos tremiam e os olhos em chamas que falhavam. Ele estava maltrapilho e cansado. Devia estar sem comer por um bom tempo.


- ...coma.  Na segunda gaveta da minha mesa você vai encontrar alguns biscoitos salgados. - o contrabandista sentia o local onde tomou o golpe latejando, o fez pensar em quantos ele já tinha golpeado e matado usando a espada gêmea daquela mesma que tinha ferido seu abdômen algumas horas antes. - Eu estava indo de seu encontro. Achei que estaria em Ponta de Lança lutando pela Resistência.


- Achou errado. Estou voltando para Trion. Minha missão com a Resistência já se encerrou. Iria perder o seu tempo indo para o campo de batalha. - disse o tritão, se movendo para longe da cama e pegando a comida na gaveta. - Eu não tenho mais motivos para continuar pela região, estou voltando para casa.


Nidalion pega um biscoito salgado, e começa a comer. Se senta na mesa e remexe alguns papéis jogados e anotações feitas. “Ele não consegue ficar parado. É igual a mãe”, foi o que Ivan pensou, vendo seu filho evidentemente apreensivo com toda aquela situação. O contrabandista tenta se levantar. Vê pela janela que já está amanhecendo.


- Voltando para casa? Eu achei que estava em perigo, e que eu poderia… - a frase não se completa, ele percebe o quanto a ideia de bravamente marchar para “salvar” o filho tinha sido algo destemperado. Uma decisão com paixão e intensidade que parecia estranha agora.


- Achou que poderia me salvar? Que chegaria com seus mendigos marinhos me tiraria de uma enrascada como um herói? O pai que nunca vi e que me tiraria de uma enrascada?


- ...eu só quis fazer a coisa certa. Me disseram que você corria risco, e que sou avô. - disse o contrabandista, se levantando e aproximando do filho, ainda muito irritado.


- AVÔ??? Esteja satisfeito em ser um homem vivo depois de me encontrar! Passou sua vida inteira sem se preocupar com a minha existência e agora vem com essa conversa??? - o tritão estava com os olhos brilhando em chamas. Uma de suas mãos estava no cabo da espada. Seu corpo emanava angústia, mas sua mão estava firme - Nessa viagem eu conheci pelo menos 3 pessoas que tiveram contato com você, e todas elas tem uma figura de pai construída de você melhor do que eu!


- Eu sempre tive medo. Medo de confrontar sua mãe. De confrontar os erros que cometi. Medo de confrontar você. - O velho também parecia angustiado. Parecia muito mais  velho do que era naquele momento. Os olhos mais pesados, olhando para o filho. - Por favor, me perdoe.


As mãos do tritão voltaram a tremer. Ele teve poucos segundos até perceber o avanço iminente do contrabandista baixo e esguio. Os braços se abrindo e rapidamente o rosto do homem atingindo seu peito. Os braços cercando seu corpo em um abraço forte. O soluço de um choro preso por anos.


Nidalion está congelado vendo aquele homem que atacou, curou, ameaçou e que agora estava lhe abraçando com força. Não sabia o que fazer. Era um abraço que deixava sua cabeça, coração e ventre confusos. Existia sentimento naquele gesto, e talvez em algum outro momento toda aquela situação não fizesse diferença, mas naquele instante era o que precisava sentir e se deixar sentir.


- Eu não sou ninguém para te perdoar, Ivan. O que você fez no passado não importa mais. Dentro de alguns meses eu também serei pai, e não quero carregar comigo esse sentimento. - o tritão disse, com a voz engasgada e raspando. - Seu navio me salvou durante essa viagem. Missão cumprida. Agora me solte.


- Não desfaça esse abraço. Não agora.


E os dois ficaram ali por minutos. Em algum momento, Nidalion também retribuiu o abraço. Unidos naquele momento singular do tempo, três gerações de uma mesma família ali. Ivan sentiu o seu amuleto de Blathae vibrar durante esse abraço. Havia algo ali que ele não conseguia identificar. Algo diferente demais.


 - Se eu serei avô, onde está a sortuda grávida da criança? - foi o que o contrabandista perguntou, ao se afastar do abraço e olhar nos olhos de seu filho, agora com os olhos irritados com o choro. Era uma troca de olhares sincera, mas ouvindo essa pergunta e o tom que ela foi feita, Nidalion sabia que o pai conhecia a resposta.


- É um pouco complicado de explicar, mas eu sou o pai e também carrego comigo o filho. - o tritão disse isso e colocou as mãos no ventre. - Estou voltando para Trion porque minha missão já foi cumprida e não tenho motivos para me arriscar mais por aqui no continente.


- Pedirei para minha imediata mudança de rota. Ela irá te levar para Trion. Os piratas que contratamos para ajudar na missão vão seguir as ordens de reportar a um líder de Trion quando chegarem em Ponta de Lança. - o contrabandista disse, limpando os olhos e se arrumando novamente. - O mínimo que posso fazer é garantir que receba uma carona para casa. Você e meu neto.


- Não se acostume com a ideia tão fácil. Nem eu me acostumei ainda. - Nidalion olha pela janela da cabine e vê o sol nascendo. - E não espere que eu te convide para tomar um café quando chegar em casa. Já terei muita coisa para explicar para a corporação e para o meu avô.


- Eu não irei te acompanhar até Trion. Zandra fará isso. Preciso voltar para o continente. - Ivan enxuga a última lágrima que tinha no rosto. Os olhos parecem muito mais claros, até mais jovens. - Tenho alguns assuntos pendentes e ter te encontrado me deixou claro algumas coisas.


-  Assuntos pendentes? Mais filhos que precisa salvar? - o tritão diz isso com o tom de voz desdenhoso, mas menos tenso em comparação com o começo da conversa. Ele percebe um sorriso no rosto de Ivan, que coloca a mão em seu ombro.


- É, são meus filhos também. - o sorriso no rosto dele ficava ainda maior enquanto ele chegava a conclusão que pairava em sua mente faziam dias. - Eles precisam de mim. Vou partir de imediato. Em outro momento eu irei te visitar e conhecer meu neto.


- Talvez em outro momento. - o tritão vai em direção a porta que leva para o convés. Enquanto ele caminha, ele percebe que Ivan está parado, olhando pela janela. - Ivan, acho que você está atrasado. Vamos?



https://www.deviantart.com/sinsvalentine/art/Under-cerulean-skies-344639615



O lobo do mar olha pela janela o oceano. Aquele balanço que já conhecia desde que começou a caminhar e nadar. Ivan pensa em seu colega que pereceu em combate buscando se reencontrar com seu filho. “Obrigado Baba’doo”. Estava na hora de voltar para a terra firme. Ainda tinha pendências e o tempo não costumava ser seu aliado, mas também não era seu inimigo. O tempo era consequência de suas escolhas.


- Vamos sim. - ele se vira e começa a andar na direção da porta, junto com seu filho recém conhecido.


- E quem são esses filhos que pretende ir resgatar? Vai resgatar igual fez comigo? - e Nidalion ri da própria piada dita, olhando para Ivan, enquanto ele caminha junto e destranca a porta da cabine para sair.


- Você adoraria conhecer eles. Um deles é um clérigo muito safado e de coração enorme, o outro é um artista de circo muito talentoso e sábio, ele faz várias vozes diferentes... - Ivan começa a falar sobre os seus companheiros, enquanto os dois saem da cabine. A luz do sol aquece o rosto dos dois. Um novo dia se inicia. Um novo começo.

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