Um Canto de Despedida

É curioso como o corpo do gatinho ainda tinha espasmos do choque que teve na batalha no Farol, Hernán costumava ficar imóvel nos seus momentos de reflexão, agora seus músculos saltam com a memória da exaustão traumática, do som dos mosquetes, da perda de sangue e da adrenalina. "Está tudo bem", pensava, "tive outras batalhas tranquilas depois disso, estamos nos saindo bem... tudo está sob controle". Mas algo parecia inquieta-lo.  Existiria algum ponto cego no seu planejamento futuro? - Não, não tem. - Suspira  - Mesmo assim é bom revisar. 

 

Ele rascunhava uma composição, era assim que o estratégico bardo pensava com maior clareza…

 

Através de canções. E essa música falava sobre um vulcão divino tão alto que alcançava as nuvens dos sonhos, apesar de poderoso era muito ingênuo. O outro verso falava que em sua sombra se escondia um estudioso com livros de ferro e coração pesado. No mar, havia um guerreiro errante que navegava com vestes rubras e mente idealista, e ele perseguia uma criatura assassina, que voava longe em sua caçada, tão tão longe de sua ilha. O aedo lembrava como os dragões pediram a morte aos deuses, e todo o ciclo de morte foi iniciado... e a partir dali, todos poderiam morrer! Os dragões que no céu reinam, os gigantes que na terra fazem suas cidades, os grandes peixes que no mar mantém seu império: no fim, todos morreriam. Dos senhores aos escravos, todos morreriam... Hernán para de escrever. Ele descobriu a origem da sua inquietação. "Maldito" pensa, "Preciso acabar com isso".

 

O bardo busca uma janela para ver o Sol, o tempo de descanso está acabando, em breve a equipe vai novamente agir em prol da revolução, mas alguém não pode participar do mais novo embate potencialmente letal. Hérnan sai daquele cômodo de descanso para encontrar o nobre de Trion.

 

Já tinha virado hábito toda aquela dinâmica de combate com os membros errantes da Resistência, Nidalion já tinha se acostumado em observar de longe eles lutando com voracidade e letalidade sem igual. A forma como o golias Ymir era brutal e calmo, como Zoora… ou Oz, ele não sabia, tinham o sangue frio de agir sem impulso. A graça e falta de escrúpulos do dracônico albino que curava e destruía com a mesma meticulosidade, onde sua filha elfa era um engenho de puro medo e destruição. Apesar dessa demonstração de técnica e força, os olhos do tritão nunca desviavam do mais perigoso deles, o Herdeiro da Resistência.

 

“Essa imundice de cheiro nunca passa”, pensou Nidalion depois que as coisas se acalmaram. Tanto tempo na superfície e ainda não tinha se acostumado com o ar e a poeira. O que confortava um pouco era estar perto da brisa do mar. Já fazia tempo que além do ar, o mal estar de carregar uma nova vida o deixava alerta, mais alerta do que normalmente ficava. Junto com esse alerta, de tempos em tempos o enjoo vinha e nesses momentos preferia se afastar. Segundos para se recompor e colocar a cabeça no lugar. 

 

Após vomitar seu desjejum em uma viela próxima, viu entrando mais alguém. “Foi só o tempo de baixar a guarda que o gato veio buscar o prêmio" foi o que pensou. Pegou sua espada e aguardou a aproximação.

 

E o caçador se aproximava. Um patrulheiro naturalmente não tem dificuldade em encontrar alguém, especialmente uma vítima. As lendas internas da tradição de patrulharia relata poderes de localização, de marca e busca. É paradoxal, pensa Hernán, me preparei tanto para matá-lo considerando que nunca estaríamos sozinho (um cenário onde precisaria de ajuda para abater meu antigo tutor e mestre), e quando decido conversar, lá está ele: sozinho e vulnerável. Um inevitável sorriso brota no rosto felino, Hernán sabe que por seu tamanho e idade sempre foi subestimado, apenas uma pessoa o enxerga como ele realmente é. Com a letalidade que ele tem. E isso, o agrada. A garganta de Nidalion secou ainda mais, o gosto amargo da poeira, vômito e ansiedade preenchem sua boca. A cautela se tratando de Hernán era algo que não poderia faltar. A espada em mãos e uma conjuração de fuga na ponta da língua eram as respostas para aquele momento.

 

Sankara, a besta mutável e hoje alada pousa na outra extremidade da viela. Vendo o tritão pegar a espada, o tabaxi retira a flauta do bolso e balança o instrumento enquanto se aproxima... ele gosta dessa tensão, da iminência do conflito que sempre imperou mesmo quando eles trabalharam perfeitamente juntos. Será que sentiria saudades disso?

 

- Pré natal difícil, hein? - começa o bardo selvagem - Não sei o quanto está aproveitando sua estadia na Resistência, mas chegou ao fim.

 

A besta alada baforava no ombro de Nidalion. Não seria a primeira vez que estaria naquela situação, e normalmente quando estava o final era bem mais prazeroso do que se mostrava agora. “Se eu agir rápido eu ainda tenho uma chance de arrancar a cabeça do garoto ou da criatura, mas quem sobrar termina o serviço”. A espada em sua mão era só uma extensão de seu braço. Sabia exatamente onde terminava a ponta da lâmina que era herança de sua mãe.

 

- Não existe muita elegância e fineza em morrer em uma viela escura de porto, sangrando no próprio vômito, mas não esperaria esse tipo de honraria vindo de você. Também não acho que você queira terminar seus dias caído no meu café da manhã regurgitado. - Terminou a frase apontando sua lâmina limpa e clara na direção de Hernan.

 

O sorriso do flautista se desfaz com as palavras ditas, o nobre de Trion possuía palavras tão afiadas quanto sua lâmina. Hernán se lembrava nesse momento o quanto o desprezava, a eficiência de Nidalion não o tornava menos medíocre de propósitos no olhar do revolucionário. Estratégico e calculista, ele para numa distância capaz de reagir prontamente a espada enquanto pouco se importa com a exposição de Sankara... Já tinha visto sua besta falecer tantas vezes que amadureceu nesse assunto.

 

- A honraria do tribunal nobiliárquico não me interessa, escravista. Nem a régua da elegância, não passa de alienação. Mas acho que você não está afim de uma aula, está? Eu apenas te dei boa tarde e você já fala de morte. - Hernan dá de ombros na última frase, parece distraído olhando a flauta.

 

Entretanto, as pixies surgem, pousando nos ombros do Bardo Selvagem frente ao Barbo oceânico. Ele não iria baixar a guarda, está posicionado e esperava que Nidalion lembrasse exatamente do que suas convocações eram capazes. E Nidalion sabia muito bem o quanto as fadas eram ferramentas úteis em retirar de combate qualquer adversário. Uma reação errada e as fadas fariam daquela sua última dança.

 

- Me encurrala feito uma beluga sendo atacada por pescadores e espera que eu não considere a possibilidade de ser esquartejado feito um animal marinho? - A leitura corporal que Nidalion fazia de Hernán era estranha. Existia a ameaça de sempre, mas algo parecia diferente. Um pequeno fragmento de empatia?

 

Nidalion mudou sua postura e esperou que a decisão não fosse a última que fizesse. Manteve a espada em mãos e o feitiço de fuga na ponta da língua. “Que esse enjoo desgraçado não me traia agora”, pensou enquanto esperava pelas próximas palavras de sua contraparte.

 

- A modalidade de caça do mundo marinho nunca fez o meu estilo, Nidalion, não sou um pescador e nem uma orca exibida. No mundo terrestre, as bestas fazem um bote de alta camuflagem, aproveitam o melhor momento de distração, fragilidade e vulnerabilidade.  Ou até mesmo - e o felino encara o espadachim - caçam em grupo.

 

As últimas palavras saíram com a calma e precisão peculiares de um caçador nas florestas. E ele continua encarando o nobre.

 

- Caçar em grupo é eficaz na medida que alguns alvos são evidentemente protegidos. Isso é algo para se ponderar, não? - O bardo revolucionário dá uns dois passos para a lateral e surpreendentemente encosta na parede. Quase relaxado - É coerente tu considerar a possibilidade de ser esquartejado. Do mesmo modo, é coerente eu considerar que a fuga é sua melhor alternativa, claro, sempre para junto do seu sacro-protetor. Sabe, Nidalion, na verdade você tem que considerar que eu sou bem mais astucioso que isso. - Hernan olha em volta, referenciando a viela - Jamais deixaria a possibilidade de fuga ou de ser atrapalhado pelo seu protetor, eu o mataria primeiro... Um plano meticuloso não poupa esforços nos 'meios' para se chegar aos 'fins'.

 

- Não são só felinos que caçam em grupo. Peixes normalmente se reúnem em cardumes que são uma proteção e ofensiva bem perigosa. - Nidalion diz isso, mas esboçando insegurança nas palavras. A janela para a fuga estava se fechando e rápido. Logo mais não teria mais a oportunidade de sair dali em vista.

 

 - Puff - o felino Branco desdenha da apreensão com que foi dita a fala. Ele farejava o medo.

 

- E até os peixes menos afortunados acham proteção. Alguns colegas do exército de Krasny me apelidaram de “O Remora Ciano”. Draconianos são fiéis combatentes, e a companhia de um na cama ou campo de batalha é garantia de sobrevivência… - Ele olha para a besta baforando em sua nuca denovo - ...ou no mínimo retaliação.

 

- É, já ouvi falar da lealdade dracônica. - E Nidalion sorri ao ouvir isso. Não existia vergonha para esse hábito entre membros de um exército marinho. Algo na voz do felino deixou claro para onde rumar a conversa.

 

- Se fosse sua intenção me matar, já teria feito isso alguns instantes atrás quando tinha vantagem maxima. O que você quer comigo, Filho de Bel? Espero que não tenha vindo cobrar outro beijo da falecida esposa do nobre que lhe dei. - Nidalion diz isso ciente de que provocar Hernán era um risco  sempre. Tinha assumido muitos riscos nas últimas semanas, qual o problema de assumir mais um?

 

"De novo", pensa o mais jovem dos dois, "ele não pode me desconcertar agora". Não havia nenhum comentário sarcástico possível de se fazer em cima desse tópico, não com qualidade... Hernán nunca tinha beijado antes, isso de fato nunca tinha sido uma questão para ele até então. Um campo de ignorância... Intolerável ao estudioso.

 

- Eu poderia te dar mais algumas chances para adivinhar o que vim fazer, mas costumo me questionar sobre o quão avançado é seu intelecto. - não ficou bom, mas não era hora de qualificar suas abordagens de agressividade verbal. O tritão abre um enorme sorriso. Os dentes serrados e alinhados como uma bocarra de tubarão. Tinha atingido.

 

Hernán suspira impaciente consigo mesmo, não ficaria ali para ouvir mais provocações. Ele dispara pela viela na velocidade que só um tabaxi conseguiria executar e crava a espada na parede atrás do Nidalion, próximo de seu rosto. O vento do movimento feito pela lâmina cravando na parede faz entrar terra nos olhos de Nidalion. “Essa poeira maldita” ele pensa, enquanto seus olhos lacrimejam.

 

- Você não vai me convencer a te matar agora, não quando eu estou INTEIRAMENTE CERTO DO APOSTO. De te salvar, então dobre a língua, pois você é muito convivente quando se trata de pedir pra morrer .

 

- Se não veio me matar ou buscar mais um beijo ou afago, imagino que venha com o convite de seu pai para me juntar a grande revolução. Se for esse o caso, prefiro que me mate aqui mesmo e use minha carcaça para alimentar o seu bicho de estimação. - Nidalion limpa os olhos e consegue olhar diretamente nos olhos de Hernán. Realmente pareciam muito diferentes dos olhos que vinha encarando nas últimas semanas.

 

Agora o tabaxi estava próximo. Próximo até demais. Não era tão imponente quanto o pai mas tinha a aura de certeza de um jovem idealista. “Eu represento a vida de um povo ancestral, e ele um olhar alternativo. Dois jovens vislumbrando um futuro completamente diferente”, esse pensamento deixou claro para Nidalion que os dois nunca seriam aliados de verdade.

 

- Tão eloquente. - Diz o tabaxi irônico. - Você realmente fala bonito sobre morrer e inclusive me dá ideias, com certeza lembrarei disso no futuro, mas não será hoje que você vai morrer em minhas mãos. - Hernán deixa a espada cravada na parede e cruza os braços. - E você é surdo? Eu falei que vim te salvar. Acredite, eu te convidar para a revolução é tão impossível quando eu te pedir um afago. Não acredito nesse tipo de colaboração, gente como tu nunca abre mão dos privilégios assentados nos séculos de opressão estrutural. É patético, eu teria te matado assim que te vi, porém fortuitamente para ti, logo de início você se associou com um dos mestres. - Ele suspira e continua - E quando eu finalmente logro capacidades para submeter ambos, se torna incontornável a contradição dos fatos. - Hernán para e encara Nidalion nos olhos, para anunciar a última sentença:

 

- Você já ajudou demais a revolução. Não teríamos logrado os êxitos atuais sem a sua ajuda, a execução dos últimos planos de infiltração teve sua presença de forma tão angular quanto a minha... Tudo isso me impele a uma mudança de atitude.

 

- Não leve para o lado pessoal. Recebi ordens diretas do Imperador para cumprir essa missão com total lealdade aos membros da Resistência. - Nidalion sente um certo alívio, e a conversa se torna bem menos tensa. - A verdade é que toda troca de poder gera um vácuo momentâneo, e minha mãe sempre dizia que onde o vácuo surge, a água preenche o espaço.

 

O gatinho levanta uma sobrancelha no que o tritão continua:

 

- Minha mãe pode não estar entre nós, mas a Família Iohana não chegou onde está atualmente deixando vácuos sem preenchimento de água. Rotas comerciais afetadas, distribuição de recursos precária, assentamentos em caos e desordem. Meu avô fornece desde tecido até comida de uma costa até a outra do continente.  - O  olhar do tritão está bem mais tranquilo do que o de costume. Talvez Hernán nunca tenha visto ele com esses olhos mais baixos, e está levemente curioso.

 

- Essa história toda de revolução é algo que vai remexer esse grande lago que chamamos de mundo e gerar ondinhas por um bom tempo, mas depois as coisas voltam ao normal. Elas sempre voltam. Um dia, se quiser visitar Trion e conhecer as maravilhas da capital do mundo antigo, será meu convidado de honra. Existe sempre um assento sobrando para um bom estrategista na casa dos senhores do mar. - Quando termina a frase, ele percebe o quanto está completamente fora de sua persona. a expressão corporal de alguém inseguro e receptivo. Lastimável.

 

- Com todo respeito, não te perguntei porra nenhuma, okay? - a curiosidade do gato acabou, definitivamente. Nidalion volta a persona com as abruptas palavras de Hernán. - Sei que está cumprindo ordens, nada aqui é pessoal e você não precisa me lembrar disso... Talvez alguém tenha que lembrar a você que não é pessoal. - o patrulheiro olha para o ventre, no que o nobre de Trion automaticamente entende. Estranhamente, o gato fica desconcertado com as recentes palavras proferidas por ele mesmo - Enfim, isso não é da minha conta. Nem a sua família é da minha conta, conheço o suficiente das principais famílias da nobreza de Trion.

 

- O problemas dos terrenos é ter os olhos muito posicionados na frente da cabeça. Lhes falta olhar para os periféricos e entender que o perigo verdadeiro está espreitando. Eu já estava pensando em adiantar a minha partida, mas não sou muito bom em despedidas - disse então Nidalion, ainda com uma evidente relutância nas expressões corporais.

 

-Estou aqui porque se quiser ver sua casa arcaica de novo, eu sugiro que caia fora… - disse Hernan, certo de que estava sendo claro suficiente para o tritão aceitar a sua orientação.

 

“Parece que a janela que estava procurando para sair dessa jogada antes do fim catastrófico chegou.”, pensou Nidalion com as palavras proferidas por seu algoz felpudo.

 

- Tamanha benevolência é algo que não esperava de você. Meu povo tem uma tradição entre bardos - e aqui o gatinho já revirou os olhos - muito antiga e gostaria de poder compartilhar com você. Você está me fazendo um favor pelo jeito, e nada mais justo do que eu devolver o favor de alguma maneira. - a postura de Nidalion era bem mais ereta, e existia alguma confiança ainda em sua posição como nobre. Hernán pouquíssimo afeito ao papo ouve mais pela esperança de ser algo útil do que por respeito, já teria o interrompido em outro caso - A líder que virá com as tropas de Trion ajudar na invasão é uma velha conhecida. Se você não gosta de mim, vai gostar muito menos dela. Não dê a oportunidade dela manter controle sobre o porto. Mahara é uma tritã ambiciosa e gosta de improvisar muito mais do que eu. Tomar Ponta de Lança para Trion seria a garantia para sua promoção nos Lâminas Relampejantes. Ela é a segunda no ranking. Esse forte é o caminho para o topo.

 

O sentimento de Nidalion é conflitante. Existe um tom de traição em suas palavras, mas naquele momento a vida de uma líder ambiciosa e cruel de sua nação e de seu filho e até sua própria têm pesos diferentes.

 

- Já terminou? Porquê assim, o problema dos nobres é não entender que somos todos iguais conato e inatamente. A distinção não é intrínseca. E o perigo para ti está mais próximo do que você imagina, o próximo combate seria letal e não bastaria para ti a minha escolha de não querer sua cabeça. Por isso temos que ir, de preferência agora.

 

Aquela não era a melhor saída, mas Nidalion sabia muito bem que Hernán não mentia quando dizia que o atentado contra sua vida era algo em questão de tempo. O tritão enfiou a mão no bolso de sua mochila e apertou um pequeno pergaminho enrolado com força. “O Athel vai me matar...”, pensou.

 

- Sei que seria um pouco de abuso, mas como você mesmo disse, nobres não sabem o lugar deles. Gostaria de te pedir mais um favor. Entregue esse pergaminho para o Athelstan. Ele nunca me deixaria fugir sem que ele viesse atrás, mas ele vir atrás colocaria a vida de vocês e do… cozinheiro em risco. - A cabeça careca e raspada de Nidalion estava suada com toda essa reviravolta em poucos minutos. - Eu não gostaria de fazer ele escolher entre tantos deveres juntos em um lugar só. Ele que se vire com vocês. Hernán suspira, vendo o papel e pega com desdém.

 

- Não garanto a entrega. Estou decidindo se conto da fuga segura ou se aprecio a desolação emocional advinda da sua ausência inexplicável. Parte de mim cogita dizer que te matou, só para ver o que aconteceria. Enfim, não pensei na parte B deste plano.

 

- Você não arriscaria o resultado final da missão deixando um de seus colegas mais poderoso em fúria e completamente descontrolado. Você é mais esperto que isso, e nós dois sabemos. - O tritão diz no que se segue apenas uma risada do felino acompanhada por mais um grunhido da besta, é um risco que Hernán claramente não se importa.

 

O tritão, então, olha para a besta e pensa, “Será que ele pretende me escoltar montado nessa coisa?”. O olhar não deixa dúvidas, ele não gostava de se imaginar voando naquela criatura a tantos metros do chão. Acompanhando o olhar se Nidalion, tabaxi pondera:

 

- Se tiver uma ideia melhor, eu te apoio. Digamos que estou pagando pela sua contribuição à revolução até aqui. Caso contrário, o céu é o mais seguro e eficiente. E então? - O Sankara aumenta de tamanho conforme uma pequena Pixie cantarola ao seu redor. Está o dobro, altivo.

 

- Hehehe só me deixar próximo de alguma praia ou rochedo deserto que consigo me guiar bem. - Nidalion monta na criatura com relutância. Aquela seria sua despedida covarde do campo de batalha. O coração apertava pelas palavras não ditas para os companheiros, e principalmente para o dracônico que lhe protegeu dia e noite, mesmo antes da notícia sobre sua gestação. A agilidade e conforto em subir na criatura mostrou qualquer falta de medo dessa forma de locomoção. Hernan estava acostumado a percorrer longos trajetos com o companheiro voador. As primeiras batidas de asas fazem mais poeira levantar. A última lufada de poeira nos olhos do tritão.

 

Após decolarem, algo foi mais forte que o tritão. Talvez toda aquela situação tenha feito ele pensar sobre coisas que talvez ninguém tivesse percebido em todos esses anos em sua nação tão antiga e fechada para novas ideias.

 

- O que você acharia se eu dissesse que libertar todos os Aarongar não parece uma ideia ruim? - Perguntou para o tabaxi, em um tom de voz tenso enquanto a criatura voadora estava pairando sobre o litoral.

 

- Acharia normal, uai. Os tritãos do ocidente não são escravistas... não é porque alguém é da elite que nasça e morra reproduzindo a ideologia hegemónica, necessariamente - a igualdade pronunciada nas palavras não disfarça o desdém da voz ao falar de elites. - Eu só acho raro.

 

Hernán pensa franzindo a testa como querendo lembrar de algo

- Bem... lembro dos relatórios que a Resistência já teve uma dracônica vermelha lutando conosco, e você sabe que eles são a elite das castas de Krasny... Ah, o feudo de Munshausen foi queimado com a ajuda de um nobre de Da'yan, dizem que é do ramo principal ainda, herdeiro de um dos 7 canato. - Hernan dá de ombros. - Enfim... Meu pai acredita no potencial dessa gente, eu já julgo conciliador demais. É mais confortável ser livre quando há cativos, bem como ter o que comer e vestir quando o outro não tem... Normalizaram a miséria e a fome, é raro alguém ansiar igualdade ou justiça social estando no topo, preferem a sazonal caridade. Por isso eu desconfio. 

 

Hernán pareceu esquecer sua companhia, e momentaneamente se perde em pensamentos, e Nidalion observa com uma mistura de confusão e interesse estranho.

- Apesar dos profundos estudos e teoria, uma luta não se faz com racionalização. O mais leigo e iletrado camponês promove mudanças, pois a luta por igualdade se faz com sentimentos: raiva, revolta, indignação, medo, amargura e principalmente esperança! E se você não sentiu nada disso pois você nunca viu sua mãe passando fome, ou seu pai condenado a escravidão, ou não conheceu seu avô porque o trabalho compulsório o matou cedo, bem... Só tem um jeito de você sentir a emoção suficiente diante da injustiça para se levantar e lutar: empatia. E eu acho esse o mais raro sentimento das criaturas sapientes.

 

Nidalion observa por uns instantes e se questiona como ele não engoliu um inseto falando tanto, por tanto tempo e voando. Ele estava impressionado.

 

- ...eu estava pensando mais na ideia prática. A maior parte dos aarongares que fazem a sua parte do trabalho não sofrem, são só os desleixados e preguiçosos que acabam sofrendo mais. Esse sofrimento todo direto que considero um desperdício de energia de nobres e até do Império. - o tritão buscar escolher as palavras e tentar achar uma lógica para o seu pensamento que vinha deixando sua cabeça agitada por muitas noites.

 

Nessa altura, Hernán já revirou os olhos tanto que deu a volta na cabeça. "Patético" pensava "é inacreditável como essa gente exista e considere normal reduzir pessoas a números. Só pensam na prosperidade do seu estado terrorista".

 

- Penso que não faz mais sentido termos tantos aarongares trabalhando e morrendo sem receber qualquer retribuição. Existem dezenas de aarongares para cada tritão, em algum momento a nossa estrutura não vai sustentar mais essa diferença de quantidade. Talvez os Aarongares Livres não sejam inimigos de Trion, mas futuros aliados. - Nidalion tinha encontrado as palavras, tinha juntado as ideias da maneira que gostaria. - Se cada aarongar trabalhar e receber pelo seu trabalho, ele tem a escolha de devolver esse valor pago em produtos e itens de consumo. Se o nosso Império deseja expandir, precisamos de uma população que produza, mas uma também que consuma.

 

O tritão parecia muito feliz em finalmente conseguir juntar as ideias que tinha tido acompanhando o grupo por tanto tempo. Parecia claro como a água litorânea de Kela Kaka que essa seria a solução para o caos inevitável de sua nação. Ele sorriu de volta para Hernan enquanto pousavam em uma praia deserta.


https://www.artstation.com/artwork/NZR4g

- Claro, claro. Sempre as ideias práticas fruto dos estudos: A Liberdade dos Aarongar economicamente viável e não pela dignidade da vida deles. Teoria, cálculo, as somas demográficas.. todos os privilégios de quem não passa fome ou injustiças, lembro de uma autora que falava isso... "Mais razão e menos emoção"*, uma estudiosa de Gnoma, fácil para ela, nunca teve que sentir certas emoções. Ah, o conforto dos estudos. -irônico e debochado- Como eu disse, não sou meu pai e não acredito na cooperação de classes. - Enquanto fala isso, Nidalion observa com olhos atentos e certa felicidade. Ele imaginava que Hernán iria achar a ideia muito boa. Segundo o olhar dele, o tabaxi com certeza tinha achado a ideia ótima.

 

E o Gato habilidosamente salta da besta voadora. O tritão consegue descer com um mínimo de decência dessa viagem. A mente estava clara, mas ao mesmo tempo o coração apertado. Tinha tantas coisas para dizer aos companheiros de semanas, mas não iria acontecer.

 

-Chegamos, bem, a despedida, Vossa Graça.

 

- De todas as possíveis pessoas que iria me despedir nessa empreitada, você com certeza seria a última que esperaria qualquer gracejo. - Nidalion ainda não tinha percebido, mas aquela era sua saída do palco sem chamar atenção. Sem salva de palmas, sem um último dueto ou monólogo. Era ele se enfiando por trás das cortinas e caminhando para o camarim.

 

- E com razão. 

 

- Você sabe que iremos nos encontrar novamente não é? Diria que em no máximo duas décadas mais um conflito irá eclodir e infelizmente não estaremos do mesmo lado nesse caso.

 

- É... Eu sei. Não que a oficialidade do Estado de meu pai me aguarde necessariamente, mas sinto que ainda iremos nos matar. De todo modo, sabe porquê eu ativamente vim te tirar do conflito quando seria proveitoso ficar neutro e te ver morrer nas mãos de terceiros e ter a consciência limpa de não ter feito nada?

 

- Não faz diferença agora. - diz Nidalion e dá de ombros, pensando que possivelmente vai precisar encontrar algum barco no caminho da volta e abordar buscando recursos. Tem alguns dias de viagem e não têm mantimentos suficientes para seguir.

 

- Não existe neutralidade diante se uma injustiça, Nidalion. Assistir é sempre ser cúmplice, e isso vale também para estruturas opressivas e não somente casos particulares. Em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antiracista. É a mesma lógica para esse caso, se eu vejo justiça na sua sobrevivência pelo que fez até aqui e não merecer uma morte covarde, não basta eu não tentar te matar, eu devo impedir que te matem.

 

Hernán espera até que suas palavras assentem e façam sentido na mente do receptor, quando decide terminar.

 

- E é por isso que a traição de meu mestre jamais será perdoada. - e o gatinho vira de costas, voltando a besta gigante. Falando casualmente sua mágoa mais profunda - Eu seria um escravo em Felyn, como meu pai. E diante de um escravista, meu mestre não considerou nem por um segundo toda a dor imperante em milhares, inclusive naquele que chamava de pupilo, e prontamente o levou para a cama. - Hernán chegou na besta e olha diretamente ao Nidalion. - Não posso chamar de mestre, aliado ou mesmo 'gente' alguém que compactua de tal modo com a política mais brutal de alijamento de direitos inatos do Oriente. Se ele não me considera digno de liberdade ou vida, então serei eu igualmente recíproco. - e o Hernán sobe na besta, e sorri de volta. - É um tchau?

 

- Matá-lo não vai te trazer tranquilidade ou qualquer sentimento de alívio,e você sabe disso. - diz Nidalion, pensando em quanto o ciúme do felino tinha sido coberto por uma manta de ideologia distorcida. “O Falso Idealista se revelando em poucas palavras”, pensou enquanto observava o seu algoz se preparando para decolar e seguir voo.

 

- Não é sobre tranquilidade ou alívio. Se meu horizonte de expectativas coubesse qualquer um desses termos eu não estaria levando a vida que tenho na sombra da revolução, e nem tu abaixo das ordens imperiais. E você também sabe disso. - Hernan sorri. - Se você está bem aqui, então é missão cumprida.- E o bardo terrestre cumprimenta com a cabeça o bardo marítimo. Com o mais sincero e sereno olhar e sorriso que poderia ter, dado as circunstâncias todas. Sankara decola e levanta uma nuvem de areia com sua batida de asas, cercado das fadas que seguem voo, voltando para o porto de Ponta de Lança. Uma cena contrastante, de uma figura cercada de luz e fantasia, mas preenchida de sombras e tirania.

 

Percebendo a total solidão naquela praia deserta, Nidalion deixa suas pernas firmes bambearem. Ele cai de joelhos, e seus olhos estão cheios de lágrimas. O aperto no coração era forte. Como se todo o peso de culpa e alívio por ter deixado o campo de batalha viesse com força máxima. As mãos trêmulas tocam o rosto, molhado com as lágrimas. As gotas escorrem até seus lábios e ele sente o sabor do mar. Água salgada. Seus joelhos estão cheios de água salgada, e as ondas batem em suas costas.

 

Uma das mãos toca sua bolsa e encontra um dos cigarros de Zoo’ra. Instintivamente, como se já tivesse feito isso outras vezes, com um simples feitiço ele acende o cigarro. O primeiro trago preenche sua boca com a fumaça imunda. Ele tosse e cospe. O segundo trago desce mais suave. O peso no peito de alguma forma diminui, assim como a tremedeira nas mãos e as lágrimas. Ele olha, distante no céu o bardo e sua besta se afastando.

 

- Vamos ver o quanto o Filho de Bel consegue manter a compostura quando enfrenta a fúria do Filho do Mar e do Trovão. Um dos dois eu não irei encontrar depois desse conflito. - O tritão coloca a mão em seu ventre. Estava se acostumando com a ideia da gravidez e os poucos momentos sozinho lhe fazia sentir confortável conversar com a cria. - Seu pai dá conta, ele vai querer te conhecer algum dia.

 

Ele fica mais alguns instantes na praia, termina o cigarro e percebe que até a pior imundice no ar tem suas consequências positivas. Estica suas pernas, sabe que vai nadar bastante até achar algum barco que possa roubar recursos para chegar em Trion. Ao entrar na água, ele sente suas guelras se preenchendo de água salgada e morna. De volta ao seu habitat.

 

Quanto mais fundo, mais distante os problemas que tinha encontrado ficavam. Deixava para trás todo o conflito e discórdia. Carregava consigo a semente resultado desse caos. Ele não tinha dedicado muito tempo a pensar em nomes. Sabia que existiam regras claras no nome dos filhos de sua Família. Ele sente e sabe muito bem que carrega uma menina. Nidathelina. Esse seria o nome. Dracônica, humana ou tritã, esse seria o seu nome.

 

A luz do sol ficava difusa a cada metro que o tritão afundava mais e mais. Aquele era o fim de sua empreitada com membros da Resistência. Sua recordação desses dias seria o Machado Relampejante que tinha encontrado, e a sua filha. Foram bons dias. Viu com seus próprios olhos o poderio dos terrestres. Sabia que dali em diante, seus anos de vida seriam para preparar sua filha para o pior, porque esse foi só o começo do fim dos tempos de paz no mundo.

 

Um texto canônico dos eventos na Invasão do Forte Ponta de Lança.

Uma co-autoria entre Loker e Rick Guibar

Comentários

Postagens mais visitadas