Consciência Orgânica e Inorgânica

As últimas semanas têm sido bem estranhas. Passo a maior parte do tempo na cabine. Ou quarto. A Cabana se move então não sei qual o nome adequado para os ambientes internos. Nomenclaturas que me apego o tempo todo. Trivialidades. O fato é que faz tempo que não passo tempo junto de outros indivíduos. Indivíduos que existem. Não tenho como contabilizar o tempo que passo com os personagens dos livros que leio.

Quando saio da cabine, tento esticar as pernas e ler um pouco no salão principal. Os membros dessa empreitada são bem diferentes do usual. Sempre se espera que as coisas sejam iguais nos livros. Dinâmicas de membros que se complementam e se completam. Diria que o que existe aqui é no mínimo disfuncional. E mesmo sendo disfuncional, eles conseguem fazer dar certo.

Minha origem profana não me permite ter paz, mas em uma colônia de ilitidios existe uma hierarquia e dinâmica muito clara. Aqui eu percebo um desbalanceamento estranho às vezes. Quando abaixo meu livro e através das lentes dos óculos eu vejo discussões, atritos e abraços. E ainda mais estranho, as discussões que partem de partes obviamente irreais.

A que chamam de Helena é obviamente um produto de tecnologia experimental, algo que não foi criado do nada. A espontaneidade da sua existência é uma série de cálculos bem feitos. Não existe cheiro ou sabor de consciência. Olho para ela e não consigo sentir o odor perfeito de massa encefálica fresca. Diria que o mesmo acontece com Tərviz, um autômato que um dia foi um ser biológico. Porque abrir mão dessa dádiva e trancar o ser em uma caixa de ferro gelada?

Os dois me fazem pensar o quanto eu não sou muito diferente deles. Eu posso ser uma forma de vida biológica consciente, mas eu não nasci. O corpo que chamo de meu teve outro dono, que foi raptado, violado e cultivado feito um fruto. E quando o amadurecimento chegou, minha existência se iniciou. E mesmo com essa existência, eu era só mais uma célula no grande organismo que é uma sociedade ilitidio. Só conheci a individualidade quando me exilei, e mesmo assim, o que me torna diferente desses outros dois?

Se esses dois englobam a pureza de raciocínio e lógica, a que chama de Thora condensa a impulsividade. Se colocando e colocando os outros em risco com seus instintos. E apesar de eu repudiar essas atitudes, me faz pensar na natureza pouco ortodoxa da vida e das reações de seres biológicos. Outros membros dessa trupe são formas de vida complexas e marcadas.

O anão emana a aura de um morador das entranhas da terra e do mundo, mas por algum motivo quando tive a oportunidade de tocá-lo com meus tentáculos, não senti a mesma energia que um anão normalmente tem. Orgulho, ganância e cobiça. Nada. Peculiar. Diferente do que chamam de Bram. O menos complexo de todos, que exala imundice e corrupção. Diria que de todos é o único que me enxerga da maneira que eu me enxergo. Uma criatura profana e vinda de um mundo cruel. Ele não esconde seu desprezo pela minha vida, e diria que não o escondo pela dele.

Um dia desses enquanto terminava minha leitura, percebi a maneira como ele me olha. Eu já vi aquele olhar em caçadores sombrios e anões. Existe ódio puro em seus olhos. Talvez ele saiba. Saiba o quanto desejo estar com sua companheira. O cuidado de Pulelehua comigo me deixou confuso. Um tratamento quase maternal que eu nunca conheci. O cuidado e olhar que nunca recebi. De todos os impulsos, eu deveria ter hesitado. Deveria ter deixado de lado o impulso carnal de abraçar e beijar. Ainda tenho a leve lembrança do calor de seus lábios. Nossas mentes unidas enquanto consumia as sobras da existência do nosso emboscador.

Às vezes me pego em desilusões. Imaginando em como seria devorar as memórias de seu parceiro. Saborear cada segundo que tiveram juntos, vestindo sua pele e entendendo o que é amar. Toda essa provação e delírio sendo acompanhados pela mente de Pule. O deleite final de nossa união. Um morrendo para o outro existir a partir de sua carcaça. Ocupar a casca oca de alguém e ser amado. Não. Isso é loucura. Ideias grotescas e distorcidas.

Eu sou uma vespa perdida, que não tem mais função. Cheia de veneno, mas sem propósito. O meu propósito não é amar ou ser amado. Um ilitidio nem entende o conceito de amor. Eu nasci da profanação do corpo de alguém, e nada que surja desse ato impuro pode gerar algo bom. Meu prazer seria o de destruir algo belo, mas eu nunca ocuparia o vácuo deixado. Questiono a existência dos autómatos com formas estranhas, mas no fim das contas eles são livres. Escolheram existir ou mudar sua existência. Eu escolhi mudar, mas não mudei. Eu escolho amar, mas não amo. Eu escolho não existir, mas não tenho coragem. Ou talvez eu ainda tenha orgulho demais para deixar de existir.


Fonte: https://www.premiumbeat.com/blog/create-annihilation-inspired-vfx/

Estamos seguindo para a Anomalia. Talvez essa seja a última parada. Li o suficiente sobre esse lugar. Ele muda tudo e todos penetram sua superfície reluzente e nadam em seu mar de mistérios. Que essa seja minha última caminhada. Que penetrar nesta zona de mistérios me mude. Que eu nunca saia desse domo de caos e essa pele roxa que eu escondo com ilusões e truques seja transformada em definitivo. Se eu não tenho o poder de me transformar, que a Anomalia me transforme.

- Graogil Sacks

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