Diamantes e Lava

 
- Levante bem os punhos. - A voz grave e firme da minerite costumava incomodar muito no começo o jovem, mas já estava se tornando algo corriqueiro. A maneira como ela falava parecia quase sempre insensível, mas a pele de diamante azulado escondia algo que ainda era um mistério. Ster'nsaphir se mostrava muito inteligente, mas sua falta de sensibilidade não tornava a melhor mestra possível. Kila sentia isso nos dias que decidiu passar na Academia de Geomancia, estudando os mistérios da geomancia.
 
- Disse para levantar os punhos. Se baixar a guarda mais uma vez, eu vou te atingir. - Kila não duvidava da ameaça de sua treinadora. Aquela quinzena de treino estava passando bem mais devagar que o esperado. Estava na primeira semana e a parte teórica tinha se mostrado muito interessante e o vasto conhecimento que Ster tinha mal caberia em uma biblioteca de feudo. Por outro lado, a parte prática do treinamento ainda era a mais desafiadora. Ster dormia pouco e o hábito de acordar cedo nunca foi o forte do Kila. Antes o problema fosse somente acordar antes de o sol raiar. As técnicas empregadas para praticar a manipulação dos elementos terrenos eram brutas e cruas.
 
- Mestra Ster, ainda não ficou muito claro como devo manipular elementos que não foram mapeados muito bem. Existe algum livro ou coleção que esclareça esses padrões? – Kila disse, após se limpar da poeira levantada pelas horas tentando erguer um rochedo usando os feitiços que lhe foram ensinados.
 
- Não me chame de mestra. Somos dois conjuradores. Não existe hierarquia entre nós. Se não existe hierarquia, lhe tratarei da mesma maneira que trataria um colega de estudos com 10x a sua idade. Sendo assim, te digo de novo, levante seus punhos. – A pergunta feita por Kila foi ignorada e seguiu-se a coreografia empregada pela minerite dura e travada.
 
Kila concordou com a cabeça e seguiu repetindo os movimentos que a minerite fazia com o seu corpanzil enorme e pedregoso. Cada passada da mesma parecia que partiria o chão. A dança que os dois faziam parecia algo brutal, mas visivelmente metódico e repetitivo. Os dois corpos seguiam a fluidez de colossos arcanos carregando consigo séculos de conhecimento repassados de mestre para aprendiz diretamente.
 
- Seus movimentos são precisos, mas te falta sentir as rochas que você se apoia. Elas existem muito antes de você, então respeite e sinta o passado da poeira. – Ster diz isso passando seus pés descalços na terra, e em um movimento rápido bate seu pé. Essa batida no chão fez a rocha de treinamento se erguer um metro do chão, e se manter flutuando.
 
- As rochas são pequenos fragmentos da história do mundo. Vai muito além da geomancia. Todas as magias derivam desse princípio.  Você é um feiticeiro brilhante, faça jus ao seu título. – E em um movimento rápido, a Ster lança um golpe com seu punho no ar, que imediatamente lança a rocha na direção de Kila. A minerite nunca teve um aprendiz. “Nunca existiu uma minerite tão dura e difícil quanto você”, era o que seu pai dizia sempre. Talvez o garoto aguentasse o tranco. Ela podia sentir a chama dentro dele, não era uma simples faísca, mas o fogo para mudar o mundo.
 
A rocha avançou rapidamente na direção de Kila. Em um piscar de olhos, um pedregulho atingiu a rocha e desviou a rota. Ster olhou para alguns metros de distância e viu quem interferiu em sua aula. Yaru havia decidido acompanhar o irmão nessa estadia na Academia de Geomancia. A minerite ficou estática.
 
- Seu irmão não te terá para sempre ao lado dele para desviar as rochas que a vida lançar contra ele. – Ster olhava diretamente para Yaruciel, que se erguia na arquibancada do salão de treinamento. – Espero que não interfira mais em meus ensinamentos sem ser convidado.
 
- Espera que eu fique olhando enquanto você lança rochas mortais na direção do meu irmão? Faz todo sentido uma minerite não entender o conceito de fraternidade, mas isso já é demais. – Para um jovem, Yaruciel tinha a imposição de alguém certo de suas pretensões e direitos. Felizmente não era ele o aprendiz, se fosse o caso, a minerite talvez não tivesse tanta paciência.
 
- Yaru está certo, acho que não estou pronto para esse tipo de ensinamento mais prático... – O jovem tiefling parecia impactado com toda situação gerada. Ster notou isso e sabia que podia usar isso em favor do treinamento que deveria empregar.
 
- Se deseja tanto ajudar seu irmão, junte-se a nós. – A minerite fez um sinal com o dedo, convidando o aasimar para descer a arquibancada. O Jovem sorriu, um sorriso malicioso e animado de um garoto que conhece pouco do mundo mas está certo de tudo.
 
- Finalmente um pouco de ação nessa viagem. – Ele se levantou e desceu rapidamente para se juntar ao irmão e a anfitriã. Era possível ver o amor dos irmãos pela troca de olhares. Realmente Ster não conseguia entender essa relação, principalmente se tratando de duas raças diferentes. Esse momento lhe apresentou o erro que havia se repetido inúmeras vezes.
 
Kila baixou sua guarda. Antes mesmo de Yaruciel tocar o campo empoeirado da arena, Ster em um movimento com os punhos ergueu três rochedos enormes. Maiores do que o primeiro que tinha lançado em seu aprendiz. O som das pedras se erguendo chamou a atenção do jovem tiefling, que arregalou os olhos e viu as pedras flutuando alto.
 
- Eu avisei que se baixasse a guarda eu iria te atingir. – O golpe com o punho no ar veio, e as pedras ganharam velocidade. Os três rochedos enormes voaram, e sua rota estava traçada na direção de Yaruciel. O aasimar viu as pedras eclipsar a luz do grande salão. Seria o seu fim, e nem sua agilidade ou força fariam diferença contra aquela investida mortal.
 
O ar do salão mudou. Um silêncio enorme. Yaru de olhos fechados percebeu que ainda estava inteiro, e que não tinha ouvido o som das rochas batendo. Abriu os olhos e viu os rochedos flutuando. Firmes como se erguidos por fios invisíveis. Os olhos do tiefling brilhavam em um rubro incandescente. Sua pose era de uma estátua com os pés enfiados no chão até os calcanhares. Um instante depois, as rochas caem no chão. Seus olhos voltam ao normal, e sua consciência é recobrada.
 
- Seu irmão está certo, nunca vou entender o que é o amor de um irmão, mas eu entendo o medo de perder algo precioso. – Ela diz, colocando a mão no ombro do jovem tiefling, ainda surpreso com o que tinha feito. O jovem olha para os olhos da minerite, tão opacos quantos sempre foram. O sorriso em seu rosto era horroroso. Seus dentes de diamante refletiam e era até reconfortante que ela não sorrisse tanto, porque a visão era terrível. - O seu medo é o que vai levantar as rochas do chão sempre, mas só depois que você perder tudo o que ama e esse medo sumir, você será capaz de erguer um país inteiro com seu poder.
 
Kila olhava para as mãos, incrédulo com o que tinha acontecido. Seu irmão se aproximou rapidamente e os dois se entreolharam. Olharam os dois para a minerite se afastando do centro da sala e seguindo em direção a porta.
 
- A aula está encerrada. Tirem o dia para descansar. Amanhã Yaruciel irá participar dos treinamentos também. Pode não ser um arcanista, mas quero os dois em forma. – A minerite abriu a porta, e antes de sair olhou para trás. Os garotos estáticos ainda estavam na mesma posição. – Venham logo os dois, não posso deixar os dois sozinhos aqui na sala de treinamento. Pode ser perigoso e sou responsável por vocês.
 
Os dois aceleraram o passo e saíram junto com a minerite. Os corredores amplos e altos da Academia de Geomancia se preenchiam com a passada dos dois garotos e de Ster. Os três caminharam em direção ao salão principal. A mestra se perdia em seus pensamentos. Observava com muita atenção os jovens, unidos de uma maneira que ela nunca entenderia de verdade, mas ela sabia que um seria rocha do outro, puxando para baixo e impedindo o outro de alcançar seu potencial máximo. Uma pena, ela pensou. Caminharam até o refeitório e seguiram os dias.


Fonte: https://www.sciencemag.org/news/2020/03/lead-pollution-ancient-ice-cores-may-track-rise-and-fall-medieval-kings


Nota ao Leitor: Por se tratar de um fic feita envolvendo personagens específicos da mesa de RPG que faço parte, talvez alguns trechos possam parecer confusos e até abertos demais. A intenção é essa mesma.

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