O ZELADOR


O silêncio zumbia, interrompido apenas pelo cair ritmado de uma goteira próxima. Assim como martelar em sua cabeça, era o elemento que lá estava apenas para demarcar os últimos minutos de vida. A tortura iria acabar.
 Olho no olho. Os do homem demonstrando frieza, e os que recebiam aquele olhar, olhos de presa abatida, denunciavam toda a sua agonia.
 A mulher percebeu que nenhum músculo daquela face dura que encarava poderia equipar-se ao brilho das íris terrivelmente cinzentas. Agora que podia decifrar o que diziam, dera-se conta como eram perturbadoras. O que até então era inofensivo, ou mesmo inexpressivo, mostrou-se letal.
Ele não demonstrava nenhuma emoção. Parecia ser mais uma tarefa da qual foi incumbido pelas regras de seu mundo particular. E realizava-a com dedicação mecânica, tão natural, como se estivesse impregnada em cada célula de seu corpo.
Estavam a sós em um porão, tão ou mais antigo que o próprio prédio onde funcionava um internato de crianças mimadas e ricas; um submundo, difícil de acreditar que pessoas iam e viam nos vários andares acima, enquanto a sua vida esgotava-se entre paredes sujas.
Já cruzara com aquele rosto inexpressivo muitas vezes, durante os vários anos que lecionava, encontros ocasionais e diários nos corredores, durante as trocas de aula. Ele estava sempre a varrer, indiferente. A situação mudara quando os olhares encontram-se fora dos corredores.
Se agora doía ter que olhar para aquelas duas pedras de gelo, desviar-se seria um erro. Pois os olhos conversavam e se entendiam. O uso de palavras, até mesmo dos gestos, havia sido abolido. Naquela troca de olhares, a pergunta foi feita, silenciosa e clemente. A resposta foi dada, com dureza implacável. Mas, por mais que pudesse parecer ser loucura, até que era bom.
Entendia, pois estava claro, que ali estava porque entrara sem convite no mundo sombrio daquele homem. Proibido para pessoas como ela, pagaria um preço alto, com a única moeda corrente do lugar. Havia descoberto o segredo hediondo da criatura que habitava as sombras; pois ele era como um elemento arquitetônico móvel, presente e pouco notado.
Agora fazia parte de seu segredo, era o seu novo segredo. O óculo daquela máquina misantrópica denunciava quem foi que errou primeiro. A presa mesmo que não atraída pelo predador deve morrer.
Algo brilhou na luz da lâmpada que pendia do teto baixo do lugar, acompanhado de um sibilar.  A professora olhou para baixo e viu o filete rubro descendo por seu braço nu. O cheiro metálico agora fazia parte da atmosfera antes já tão impregnada de odores.  Olhou uma última vez para as duas pedras de gelo que, pela primeira vez, sorriam. Ouviu a derradeira gota cair na pequena poça já então escarlate, enquanto ela se desprendia do corpo, deixando-o para o seu novo dono. 


Considerações: Esse texto foi escrito por uma ex-namorada e amiga muito querida. Acho que foi um dos primeiros textos dela que li e até hoje quando leio fico maravilhado demais com a técnica que ela tem, de como tudo é tão organizado e desenvolvido em poucas linhas.

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