Diário de Femzorth: Volume 1

"Minha carne, ossos e pele são só o embrulho para o que vem nos próximos anos. Essa não é a ultima Era da nossa civilização, mas o começo. Não existe sentido em continuar postergando o inevitável, de que todos somos combustível para o Coração Escuro."

A PROFECIA

Desde criança eu tenho mesmo sonho. Lembro desse sonho com muito mais clareza hoje do que dos rostos dos meus familiares. A nevoa se formando e eu sobrevoando o mundo, eu sou uma grande águia feita de sombras e medo. Eu cubro o mundo em escuridão e pouso no pico mais alto. No alto do pico, um Homem Pequenino me espera. Ele veste uma capa feita de pesadelos e decepções. Ele sorri e levanta seu braço. Eu pouso em seu braço e observo o horizonte do mundo. Uma terceira lua, maior que as duas luas surge e o mar se ergue. Todo litoral do continente se esvazia. A água do mundo sobe aos céus e desaparece.

O Homem Pequenino acaricia meu bico e diz "O Homem certo no Lugar errado, faz toda diferença no Mundo", e balança seu braço. Eu volto a voar e vejo a grande lua se partindo no meio. Um Grande Ovo se rachando, eclodindo luz. A luz me cega. Eu não sou mais a águia. Eu estou emergindo de dentro do Grande Ovo. Eu sou sangue. Eu jorro e espalho o sangue do mundo inteiro, preenchendo todo o mar. Eu sou sangue. O mar trasborda e o litoral, toda costa do mundo é submersa pela minha presença. EU SOU SANGUE. As cidades e vilas são afogadas, os morros e montanhas também. E no pico mais alto, o Homem Pequenino me aguarda, enquanto o mundo se preenche comigo. Ele olha os pés descalços em mim. O Sangue coagula, a imensidão rubra escurece e endurece. Ele recolhe uma unica gota de mim e coloca na língua e diz "O mundo foi coroado pelo Coração Escuro".

Eu acordo, minha pele sempre molhada com o suor e excitação dessa profecia. O Coração Escuro me escolheu desde os meus primeiros dias de vida pra trazer ele ao mundo. Eu não mereço essa benção.


PRIMEIROS DIAS, PRIMEIRAS CICATRIZES

Nasci em uma cidade nas montanhas. Nunca fui apresentado apropriadamente aos meus pais. Cresci com outras crianças drows na comunidade. Até começarmos a ter consciência, não tínhamos propriamente nomes. Acabei recebendo o apelido de Sil'ilos lor, que quer dizer "Dos Olhos Purpuras" no nosso idioma ancestral. Eramos inocentes, frágeis e todos filhos de um sacerdote dos costumes ancestrais. Fomos todos ensinados desde muito cedo que a vida é dura e brutal para os mortais. Nossa comunidade era pequena, então devíamos ser fortes, se o inimigo tinha dez vezes mais guerreiros, devíamos lutar com a força de dez. Tenho poucas memorias até meus 5 anos, mas me lembro das danças. Sempre gostei de como o retumbar dos tambores fazia meu coração disparar. As chamas da grande fogueira molhando aquecendo meu corpo, me fazendo suar enquanto a musica deixava meu corpo solto e livre. Entre as cantorias e rezas, o treino massacrava os fracos e ascendia os fortes. Eu ascendia.


O DE PÉS LEVES

Poucos de nós seguíamos sob a tutela do sacerdote depois do treinamento mais intenso. O flagelo era a forma de fortalecer nossa pele e músculos. Nossos corpos não eram nossos. O meu corpo não era meu, era só o vasilha feita para servir, e algumas vasilhas precisam ser polidas e limpas de sua sujeira. A cada conquista, vitoria ou novo conhecimento, um golpe com o chicote para marcar na pele e carne mais uma passo em direção a perfeição. Aos 7 anos a minha pele das costas era uma couraça dura e marcada. Eu era o melhor. Mais forte, mais devoto e mais qualificado. Nunca duvidei que esse fosse meu destino. Meus sonhos nunca mentiram. Não me lembro do rosto dos meus pequenos irmãos, só me lembro de um deles. O apelido que demos era por sua dança, de passo leve e sempre tão preciso e suave. Ele era gentil, não se destacava entre os mais fortes, sempre cantava mais alto e mais intensamente. Gostava de sua companhia.


O SANGUE E ENTRANHAS DOS OUTROS

Um dos últimos ritos acontecia quando chegávamos aos 15 anos, uma etapa antes de recebermos nossos nomes, devíamos escolher um aliado e essa dupla formada devia vencer as outras duplas em combate. A minha dupla era um outro jovem, um pouco mais fraco. Eu gostava da voz dele, e como ele dançava. Escolhi ele pra defender. Um erro. Enfrentamos as outras duplas, antes mesmo que pudesse perceber eu estava lutando o quanto esse meu aliado não podia. Ele chorava, enquanto eu sangrava para sobrepujar os outros. A luta foi breve, consegui vencer todas as outras crianças. Todas caídas, gemendo de dor ou desacordadas. A vitoria era minha, receberíamos os nossos nomes. A ultima parte do rito infelizmente, seria a dupla que se manteve em pé lutar entre si até a morte pelo direito de receber o nome. Não pude acreditar que aquele fosse o único meio. Eu jamais mataria o Kal zorth. Esse era o apelido dele.

Antes que pudesse reagir a tarefa que considerei terrível, senti um forte calor vindo das minhas costas, seguido de um dor repentina. Kal antes mesmo que eu tivesse qualquer reação me apunhalou pelas costas. Eu estava fraco, tinha lutado por nós dois e ele estava intacto, inteiro, sem nenhum arranhão. Quando consegui me desvencilhar eu vi aquela figura de pele escura se afastando, tomando distancia. Seus pés sempre ágeis dançavam em minha volta, esperando a abertura para mais um golpe. Aquele momento, enquanto meu sangue sujo manchava o chão terroso do campo eu percebi que ele era um parasita. Faria de tudo para subir e ganhar um nome, mesmo que fosse agir feito uma cobra rastejante, fingindo a fragilidade que nunca teve. No segundo imediato, ele avançou com toda sua agilidade e destreza. Respirei fundo, deixei todas as duvidas abandonarem meu corpo. Movi meu corpo na direção contraria da investida de Kal. Ele tropeçou. Encaixei meu braço em seu pescoço. Girei minhas pernas e corpo juntos com toda força que me restava. O estalo ecoou pelo ambiente. Era Kal o seu apelido, agora me lembro bem.


FEMZORTH

O corpo desfalecido com o pescoço quebrado se espatifaram no chão. O sacerdote se aproximou e disse algo em meu ouvido. Eram palavras suaves. Não me lembro delas, mas estava ciente de que só receberia meu nome se fizesse aquilo da maneira correta. Peguei a adaga que tinha sido usada para furar minhas costas e abri do abdômen até o pescoço de Kal. Usei minhas mãos para esfregar as entranhas e sangue de Kal em meu corpo. Era morno. Esfreguei em meu peito, meu rosto e braços. O sacerdote me levantou e eu ainda podia sentir algum resquício de vida em Kal, ali jogado no chão. Os olhos dele não desviaram dos meus enquanto eu fazia tudo aquilo. O sacerdote cantou, e a musica me fez voltar para o sonho. Eu era a águia gigante. Nada tinha mudado. Ele me disse para anunciar o meu nome. Eu seria Femzorth. Todos os outros garotos e garotas que ataquei se aproximaram e disseram o meu nome. Todos os que feri, ataquei e desacordei me reverenciaram e tocaram minha pele. Eu finalmente era alguém. Eu sou Femzorth.


CASA DE SOMBRAS

Assim que recebi meu nome, fui separado do restante do grupo. Fui acolhido pelo sacerdote em sua casa, junto de outros drows que já tinham os nomes ganhos. Me tornei um dos escolhidos. Todos os que tinham nome dormiam em um salão único e separado. A primeira noite me assustei, era diferente de dormir nos barracos com os mais novos. O sacerdote dizia que os sem nome eram moldados com fogo e terra, e os com nome eram moldados com enxofre e azeite. Quando me recolhi na primeira noite o sono era pesado. Durante o sono, ouvi sons estranhos, e senti um toque no meu ombro. Acordei. Era uma das drows com nome, ela servia na cozinha do sacerdote. Seu toque era quente, e seus olhos brilhavam em um azul quase branco. Seu sorriso era convidativo e assombroso. Me levantei e vi que ela não vestia roupa alguma.

O salão circular tinha uma grande cúpula aberta no topo. Um facho de luz da lua iluminava uma parte do salão. De relance vi o restante dos outros jovens juntos. A pele refletindo o luar. A jovem que eu desconhecia o nome me puxou para perto e beijou meu rosto. Logo em seguida, mordeu meu pescoço. Não sabia o que fazer. Meu corpo inteiro tremia. Sua voz suave disse "Venha venerar o Coração Escuro conosco. Você é carne nova aqui na casa de sombras". Fui puxado pela mão para o lado do salão onde todos estavam juntos. O calor emanando de todos aqueles corpos me deixou com as pernas bambas. Os grunhidos e gemidos baixos me puxavam, enquanto a jovem me empurrava. O incenso na conseguia esconder o cheiro de suor forte vindo daquelas pessoas. Fechei meus olhos. Mãos me tocaram os braços, pernas e rosto. Moldado com enxofre e azeite.

Os dias seguiram com trabalho duro e noites de prazeres que nunca conheci ou imaginaria conhecer. Me assustava pensar que o Coração Escuro pudesse permitir isso tão facilmente. A carne de mortais roçando e raspando gerando tanta energia e estase com tamanha trivialidade. Semanas se passaram e estive no limite de crer que os ensinamentos estavam todos errados. Que nossos corpos são fontes de prazer infinito se nos unirmos, nos tornarmos um com nosso aliados e inimigos. Levei a duvida ao sacerdote. "Você tem os olhos de quem enxerga além, e nem sempre isso é bom", foi o que ele me disse. Em meu aniversário de 16 anos eu finalmente seria agraciado pela verdade. E que grande verdade.


CARNE E METAL

A cerimonia foi realizada no grande salão dormitório. Uma grande braseiro central que aquecia o lugar. Todos estavam lá. Os com nome e sem nome. Não me esqueço da canção e como ela ecoava pelo salão todo. Os tambores e batidas. O sacerdote me pediu para ajoelhar diante dele. Todos gritavam e esperavam com ânsia pelo que viria. Ele cochichou algo em meu ouvido. No mesmo instante, senti meus braços sendo segurados por outros membros. De joelhos e com a cabeça erguida, vi o sacerdote caminhar até o braseiro e retirar dele correntes. Não eram grande correntes, era feita de pequenos elos, elos espinhados que brilhavam em tom alaranjado. Instintivamente tentei me desvencilhar. Outros dois membros me seguraram pelos ombros. O sacerdote caminhou até se aproximar de mim com aquela corrente em brasas.

Suas mãos pareciam não sentir o calor daquele metal brilhando. Em um movimento rápido, a corrente foi colocada presa na altura do meu peito. Os elos ferventes raspavam em minha pele com lentidão e rapidamente esfriando com o contato com minha carne. Meu grito ecoou pelo salão, e todos gritaram juntos. O sacerdote era rápido, como se já tivesse feito isso milhares de vezes. A corrente deu a volta em meus ombros, quadril e pescoço. Senti o elo maior sendo fechado em minhas costas. O cheiro da minha própria carne fervendo preencheu minhas narinas. Nada de sangue, só o calor absurdo e a dor. Não é a carne roçando e raspando em carne que é o verdadeiro meio de alcançar a elevação, é a carne roçando e raspando no metal. Desmaiei alguns minutos depois.


PEREGRINAÇÃO

Acordei e as correntes seguiam presas no meu peitoral e pescoço, em um laço que travava nas costas. Demorei algumas horas para lidar com a dor que era respirar fundo e sentir as feridas se reabrindo com os espinhos da corrente apertando meu corpo. O sacerdote voltou e me disse que aquela era a câmara de repouso dele. Eu deveria descansar e me preparar para minha missão. A Peregrinação. Eu era o seu aprendiz que tinha sobrevivido ao ritual das correntes, e que agora deveria peregrinar e levar a palavra do Coração Negro para o mundo. Ele tocou meu queixo e disse "O Homem certo no Lugar errado, faz toda diferença no Mundo". Eu tive certeza de que meus sonhos eram a profecia e que eu seria o instrumento para realizar os feitos do nosso Senhor. Sangue para o Senhor do Sangue. Assim que me recuperei, parti em direção ao mundo, pronto para marcar o mundo com a mancha do Coração Escuro.

Parto hoje em direção ao meu destino. Deixo esse diário e relato de um filho da tradição antiga dos elfos escuros. Que leiam e saibam que quando eu voltar, eu serei a águia, a sombra e o mar de sangue que vai afogar o mundo em nome Dele. Eu sou carne e mereço ser punido. Todos merecemos.

- Femzorth

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